Elaine Pedreira Rabinovich
Psicóloga clínica, Mestre em Psicologia Experimental/USP
A Casa como Símbolo
As experiências de ser-no-mundo constituem o cerne da casa como símbolo, quer nas brincadeiras de construir casa quer nos desenhos de casa. Trata-se de uma experiência de espacialização, primeira e fundamental, geradora das demais. Trata-se da experiência de habitar o próprio corpo.
São as vicissitudes desta “habitação” (“indwelling” ou personalização para (WINNICOTT, 1971) que são “jogadas” nas brincadeiras de casinha. O corpo – o lugar onde se habita – é não apenas o locus de expressão, gestos e sinais, através de uma linguagem corporal a ser lida: ele é o receptáculo das marcas, dores, cicatrizes e tatuagens – o lugar de sua história. O modo de morar, em sua concretude conforme expresso na moradia, não é um contexto que está fora apenas, mas informa, desde fora, a forma do corpo subjetivo. Segundo PEREIRA & NUNES (1989), a casa, o corpo e o eu formam uma trindade que se manifesta como um todo nas “brincadeiras de casinha”.
(…)
Segundo GUCHT (1990, p. 388), do mesmo modo como a infância é um estado transitório na vida do indivíduo, ela só toma sentido em relação à história, à morfologia e à ideologia da sociedade global e dos grupos sociais no seio das quais ela se integra. Os jogos são reveladores da estrutura do grupo infantil, como de seus ritos, de suas regras e dos seus dramas mas também do imaginário da sociedade global. As sociedades, por sua vez, têm se ocupado em “jogar” sua própria cultura através de grandes sistemas simbólicos que marcam a arte, a organização social e a religião. Para COELHO & PEDROSA (1995), apoiando-se em WALLON, o tipo de intercâmbio que a criança estabelece com o meio social implica a consideração dos processos históricos da humanidade e é constituído num espaço psíquico que inclui necessidades e desejos.
(…)
Deste modo, o jogo de construir casinha seria um modo lúdico de ocupar e operar o espaço: ele buscaria expressar uma identidade que o corpo já registra como perda. As partes que se separam são perdas vividas conforme a rede de significações, não sendo iguais nem entre sociedades nem entre irmãos.
A primeira parte a se destacar é o sono/vigília. Esta primeira grande separação seria entre consciência/ inconsciência, a forma mais rudimentar e total de ser e de ocupar um espaço. Não há divisórias, é tudo/nada, mas há o dia e a noite, a luz e o escuro.
Depois, há a separação dentro/fora: a porta. Posteriormente, em torno deste tema, estabelecer-se-ão diversificações sutis através de janelas, pontes, jardins, quintais, caminhos de chegada-saída, escadas. Já se disse que a casa existe quando há a porta; mas a casa existe antes disto: na caverna, na gruta, no oco, no côncavo.
(…)
No jogo de construção da casa, aparecem as separações através dos corredores, das intermediações, dos quintais, muros, interfaces: as divisões sócio-familiares. Na brincadeira, há o colocar as coisas no lugar: onde a criança prevê e estabelece a ordem segundo os seus desejos.
O sentido da ordem parece contemplar dois aspectos: de um lado, a espacialização propriamente. NISE DA SILVEIRA (1982) aponta a estruturação do espaço como o que garante o homem sadio contra o delírio, como um modo de desenraizar as coisas do corpo e colocá-las no mundo. Não se trata de apenas expressar, mas de existir – ex-stare – estar fora. Este conteúdo existencial do construir casinha estaria ligado ao próprio movimento do ser-humano, do ao construir(-se) fazer-se humano (HEIDEGGER, segundo LEFÉBVRE, 1966).
(…)
As crianças, ao brincar de construir casinha, dispõem em ordem, muitas vezes o jogo sendo apenas isto, acompanhado do imaginário. Pode ser um modo de lidar com as emoções ao expressá-las e controlá-las desta forma, mas ao fazê-lo, expressam a natureza matemática do que as leva a fazê-lo. Esta ordenação das coisas no espaço colocaria a criança em harmonia.
O sentido da ordem teria, assim, um caráter afetivo e cognitivo, dentro de uma emergência empática do desenvolvimento cognitivo, sendo a espacialização uma experiência a ser compartilhada. O próprio brincar pode ser visto como um construir e compartilhar significados (COELHO & PEDROSA, op.cit., p. 52), e a brincadeira de construir casinha como um construir em que o imaginário e o significado tomam forma espacialmente.
Este movimento para a espacialização ocorre no meio, através do meio, como um meio: várias temporalidades, vindas do tempo longo da criação do mundo, do tempo mais breve dos momentos sociais e do tempo instável e curto da história singular, estruturam a forma da espacialização(…).
A brincadeira de construir casinha pode ser pensada iniciar-se no interior da moradia através do uso não convencional de espaços existentes, como sob a mesa, armário sob a escada, posteriormente construída por elementos móveis como almofadas, etc. Assim, no interior da moradia, teríamos duas categorias: a casinha adaptada ao meio e a casinha “acomodada”, construída a partir dos elementos do meio.
Segundo PEREIRA & NUNES (1989), “inicialmente surge a construção de casas individuais. Uma criança organiza o seu espaço, nele entra e permanece algum tempo, deitada, isolando-se do que está à sua volta. O processo ordena-se pela colocação inicial da estrutura do ‘entorno’ – as paredes, logo segue a ‘cobertura’, o teto. No chão, há sempre panos, esteiras, almofadas que, ao serem colocadas, traduzem no gesto da criança uma arrumação de uma cama, um berço, um ninho – um lugar de recolhimento, de proteção. Nesse espaço criado há sempre uma caixa ou caixote identificado como ‘porta’ através da qual a criança sai ou entra engatinhando” (p. 65).
Posteriormente, com a movimentação no espaço, quando a casa e seus recônditos são utilizados para esconder-se em brincadeiras com outras crianças, amplia-se o uso dos espaços e dos objetos para este ocultamento.
As crianças podem começar a construir casinha a partir dos 5 anos. Podem brincar anteriormente a esta idade, mas de modo imaginário, ou seja, a casinha é construída quase que apenas na imaginação(…).
(…)
Face a isto, pergunta-se: como estão as crianças habitando os seus corpos? que “casas” estão construindo para si próprias? como estão negociando as suas identidades através de meios construídos, além dos recursos verbais e/ou de força física? como o sentido de ordem está ocorrendo através da apropriação do espaço? onde as crianças podem ter os próprios espaços, de modo ao construir(-se), fazer-se humano?
A Casa como Símbolo
As experiências de ser-no-mundo constituem o cerne da casa como símbolo, quer nas brincadeiras de construir casa quer nos desenhos de casa. Trata-se de uma experiência de espacialização, primeira e fundamental, geradora das demais. Trata-se da experiência de habitar o próprio corpo.
São as vicissitudes desta “habitação” (“indwelling” ou personalização para (WINNICOTT, 1971) que são “jogadas” nas brincadeiras de casinha. O corpo – o lugar onde se habita – é não apenas o locus de expressão, gestos e sinais, através de uma linguagem corporal a ser lida: ele é o receptáculo das marcas, dores, cicatrizes e tatuagens – o lugar de sua história. O modo de morar, em sua concretude conforme expresso na moradia, não é um contexto que está fora apenas, mas informa, desde fora, a forma do corpo subjetivo. Segundo PEREIRA & NUNES (1989), a casa, o corpo e o eu formam uma trindade que se manifesta como um todo nas “brincadeiras de casinha”.
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Segundo GUCHT (1990, p. 388), do mesmo modo como a infância é um estado transitório na vida do indivíduo, ela só toma sentido em relação à história, à morfologia e à ideologia da sociedade global e dos grupos sociais no seio das quais ela se integra. Os jogos são reveladores da estrutura do grupo infantil, como de seus ritos, de suas regras e dos seus dramas mas também do imaginário da sociedade global. As sociedades, por sua vez, têm se ocupado em “jogar” sua própria cultura através de grandes sistemas simbólicos que marcam a arte, a organização social e a religião. Para COELHO & PEDROSA (1995), apoiando-se em WALLON, o tipo de intercâmbio que a criança estabelece com o meio social implica a consideração dos processos históricos da humanidade e é constituído num espaço psíquico que inclui necessidades e desejos.
(…)
Deste modo, o jogo de construir casinha seria um modo lúdico de ocupar e operar o espaço: ele buscaria expressar uma identidade que o corpo já registra como perda. As partes que se separam são perdas vividas conforme a rede de significações, não sendo iguais nem entre sociedades nem entre irmãos.
A primeira parte a se destacar é o sono/vigília. Esta primeira grande separação seria entre consciência/
Depois, há a separação dentro/fora: a porta. Posteriormente, em torno deste tema, estabelecer-se-ão diversificações sutis através de janelas, pontes, jardins, quintais, caminhos de chegada-saída, escadas. Já se disse que a casa existe quando há a porta; mas a casa existe antes disto: na caverna, na gruta, no oco, no côncavo.
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No jogo de construção da casa, aparecem as separações através dos corredores, das intermediações, dos quintais, muros, interfaces: as divisões sócio-familiares. Na brincadeira, há o colocar as coisas no lugar: onde a criança prevê e estabelece a ordem segundo os seus desejos.
O sentido da ordem parece contemplar dois aspectos: de um lado, a espacialização propriamente. NISE DA SILVEIRA (1982) aponta a estruturação do espaço como o que garante o homem sadio contra o delírio, como um modo de desenraizar as coisas do corpo e colocá-las no mundo. Não se trata de apenas expressar, mas de existir – ex-stare – estar fora. Este conteúdo existencial do construir casinha estaria ligado ao próprio movimento do ser-humano, do ao construir(-se) fazer-se humano (HEIDEGGER, segundo LEFÉBVRE, 1966).
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As crianças, ao brincar de construir casinha, dispõem em ordem, muitas vezes o jogo sendo apenas isto, acompanhado do imaginário. Pode ser um modo de lidar com as emoções ao expressá-las e controlá-las desta forma, mas ao fazê-lo, expressam a natureza matemática do que as leva a fazê-lo. Esta ordenação das coisas no espaço colocaria a criança em harmonia.
O sentido da ordem teria, assim, um caráter afetivo e cognitivo, dentro de uma emergência empática do desenvolvimento cognitivo, sendo a espacialização uma experiência a ser compartilhada. O próprio brincar pode ser visto como um construir e compartilhar significados (COELHO & PEDROSA, op.cit., p. 52), e a brincadeira de construir casinha como um construir em que o imaginário e o significado tomam forma espacialmente.
Este movimento para a espacialização ocorre no meio, através do meio, como um meio: várias temporalidades, vindas do tempo longo da criação do mundo, do tempo mais breve dos momentos sociais e do tempo instável e curto da história singular, estruturam a forma da espacialização(…).
A brincadeira de construir casinha pode ser pensada iniciar-se no interior da moradia através do uso não convencional de espaços existentes, como sob a mesa, armário sob a escada, posteriormente construída por elementos móveis como almofadas, etc. Assim, no interior da moradia, teríamos duas categorias: a casinha adaptada ao meio e a casinha “acomodada”, construída a partir dos elementos do meio.
Segundo PEREIRA & NUNES (1989), “inicialmente surge a construção de casas individuais. Uma criança organiza o seu espaço, nele entra e permanece algum tempo, deitada, isolando-se do que está à sua volta. O processo ordena-se pela colocação inicial da estrutura do ‘entorno’ – as paredes, logo segue a ‘cobertura’, o teto. No chão, há sempre panos, esteiras, almofadas que, ao serem colocadas, traduzem no gesto da criança uma arrumação de uma cama, um berço, um ninho – um lugar de recolhimento, de proteção. Nesse espaço criado há sempre uma caixa ou caixote identificado como ‘porta’ através da qual a criança sai ou entra engatinhando” (p. 65).
Posteriormente, com a movimentação no espaço, quando a casa e seus recônditos são utilizados para esconder-se em brincadeiras com outras crianças, amplia-se o uso dos espaços e dos objetos para este ocultamento.
As crianças podem começar a construir casinha a partir dos 5 anos. Podem brincar anteriormente a esta idade, mas de modo imaginário, ou seja, a casinha é construída quase que apenas na imaginação(…).
(…)
Face a isto, pergunta-se: como estão as crianças habitando os seus corpos? que “casas” estão construindo para si próprias? como estão negociando as suas identidades através de meios construídos, além dos recursos verbais e/ou de força física? como o sentido de ordem está ocorrendo através da apropriação do espaço? onde as crianças podem ter os próprios espaços, de modo ao construir(-se), fazer-se humano?
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